Como criar personagens para jogos?

Um método de desenvolvimento de personagens para jogos digitais.

Julia Stefanello
17 min readMar 7, 2022
Arte-conceito da personagem Aloy, de Horizon Zero Dawn (Guerrilla Games), e seus arcos
Fonte: The Art of Horizon Zero Dawn

Tabela de conteúdos

Introdução

Personagens protagonistas são os “contadores” de suas próprias histórias. Em jogos, isso é elevado a um nível muito mais interativo para o público, pois é através dos personagens jogáveis que o jogador irá conhecer e agir naquele universo virtual, muitas vezes tomando decisões baseadas na própria personalidade do personagem ou seus desejos.

Criar personagens para jogos é uma tarefa complexa que vai muito além dos gráficos. É importante que esse personagem passe a sensação de que ele possui vida própria, mas que ao mesmo tempo o jogo construa uma narrativa partindo do jogador como ator principal (no sentido de ser quem toma as decisões). Existem diversos fatores que podem ser considerados na criação de personagens complexos e profundos, e mais ainda a se considerar quando esse personagem é jogável: onde definir o ponto de equilíbrio entre a consistência nas ações do personagem de acordo com seus ideais e a liberdade de expressão do jogador?

Os métodos existentes que focam na criação de personagens para jogos são, em grande parte, direcionados a uma única parte do processo de criação, como arte ou roteiro, e podem ser bem difíceis de serem adaptados aos processos individuais de cada pessoa.

Buscando uma forma de facilitar esse processo de criação de personagens, eu elaborei um método que pode servir como um guia desses fatores que podem influenciar no sucesso desse personagem (e do jogo em si). Esse método é direcionado para desenvolvedores independentes ou equipes pequenas, onde geralmente uma pessoa faz funções de diversas áreas, como programação, arte e design ao mesmo tempo. O objetivo é visualizar o jogo como uma instância única e homogênea, onde o personagem se encaixa no contexto do jogo e na temática de forma natural, pois esse método considera que vários aspectos do jogo e do personagem vão evoluir e serem alterados conforme o desenvolvimento.

Nesse texto eu vou explicar o passo-a-passo que montei e indicar alguns fundamentos teóricos que podem ser estudados para enriquecer ainda mais o personagem elaborado. O artigo científico do método está disponível neste link.

O método C3R

Esquema de etapas do método C3R: Concepção inicial, compreensão do personagem, definição da jogabilidade, exploração do visual, planejamento de animações, finalização do design, complementação das etapas.
Esquema do método C3R. Fonte: da autora

O método cíclico e complementar de compreensão revisitável de desenvolvimento de personagens para jogos digitais, ou método C3R, segue o princípio de que as etapas de desenvolvimento podem ser revisitáveis, de forma a complementar e enriquecer a ideia inicial. O objetivo principal do método é influenciar o utilizador a compreender o personagem e organizar suas ideias sobre o jogo.

O método possui 6 etapas, cada uma com sub-etapas que focam em algum aspecto importante do personagem ou do jogo. Você pode pular, adaptar e flexibilizar as etapas conforme julgar adequado para seu jogo ou personagem. O método foi pensado para ser flexível aos processos que cada desenvolvedor já tem individualmente, então não precisa ser seguido à risca.

As etapas são:

  • Concepção inicial: é onde ocorre a definição das ideias iniciais do projeto, de forma bastante simples. Se você já possui uma ideia sólida, pode pular essa etapa.
  • Compreensão do personagem: com várias sub-etapas, tem o objetivo de explorar e definir os aspectos psicológicos, história e conteúdo “interno” do personagem. Considero essa como a etapa mais importante para a criação de personagens profundos e complexos.
  • Definição da jogabilidade: onde se considera as mecânicas de jogo e dá mais atenção à relação entre narrativa e jogabilidade. Aqui retoma-se a ideia do jogo ser um produto homogêneo.
  • Exploração do visual: etapa para buscar referências e começar a desenvolver o conteúdo “externo” do personagem, também dando atenção aos aspectos de narrativa e jogabilidade.
  • Planejamento de animações: onde se identifica e planeja todas as animações que vão ser necessárias no jogo para esse personagem.
  • Finalização do design: a definição final do visual do personagem.
  • Complementação das etapas: etapa especial dedicada a relembrar a atualização das outras etapas conforme vierem surgindo novas ideias e alterações.

Essas etapas estão distribuídas em 12 quadros (ou fichas, se preferir) que podem ser preenchidos com notas adesivas (post-its), pedaços de papel, camadas em softwares de edição de imagens ou outros materiais que não seja diretamente na área do quadro, para que fique mais fácil mover as anotações para outras etapas, remover e adicionar detalhes e manter o conceito do método de ser complementar e revisitável.

Concepção inicial

Essa é a estaca zero na criação de um jogo: a ideia inicial do que ele é. Você pode já ter diversas ideias na sua cabeça (de personagens, história ou mecânicas de jogo), ou ter alguma ideia de história e não saber como encaixar isso em um jogo, ou até mesmo ter milhares de mecânicas planejadas e não saber qual temática usar. Em último caso, pode existir apenas a vontade de criar um jogo/personagem e não saber por onde começar.

Para esses casos, felizmente existem algumas ferramentas e técnicas que podem ajudá-lo a se inspirar:

  • Tarot as a Narrative Generator: gerador de ideias para narrativas com base em cartas de tarô, disponível neste link.
  • Gerador de enredos do Big Huge Thesaurus: gerador de ideias de uma frase, com mais de 5 milhões de possibilidades. Disponível online por este link.
  • Three Hundred Mechanics: uma coleção de ideias e conceitos de mecânicas para jogos, disponível neste link. Acesse pelo link aqui.
  • Game Idea Generator: uma ferramenta que seleciona aleatoriamente alguns elementos possíveis para um jogo. Disponível através deste link.
  • Analogia forçada: essa técnica consiste em pegar dois elementos completamente alheios e tentar forçar alguma relação entre eles.
  • SCAMPER: essa sigla em inglês representa uma série de técnicas:
    – Substituir componentes, materiais etc;
    – Combinar, integrar, misturar;
    – Adaptar, usar parte de outro elemento;
    – Modificar a forma, escala ou quantidade;
    – Pôr em outros contextos, mudar a funcionalidade ou significado;
    – Eliminar, remover, simplificar;
    – Reorganizar, reverter de cima para baixo ou de dentro para fora.

Com essas ideias preparadas, já é possível começar a preencher o quadro a seguir:

Quadro da etapa Concepção Inicial. Ideias: para o personagem, história, ou mecânicas. Escopo: tempo, investimento, profundidade narrativa, etc. Narrativa básica: resumo da ideia escolhida.
Quadro de sub-etapas da Concepção Inicial: ideias, escopo e narrativa básica

Agora, você pode pensar no escopo que você tem para produzir esse jogo. Isso inclui tempo, investimento, complexidade, profundidade narrativa, público-alvo e nível de detalhe. É importante ressaltar que o escopo relacionado ao design (por exemplo, profundidade narrativa) não significa necessariamente o que vai ser implementado no produto final, e sim quanto esforço você quer colocar na fase de desenvolvimento. Linda Seger, roteirista e escritora, afirma que geralmente só uns 10% do conteúdo desenvolvido sobre um personagem é apresentado ao público, então você precisa considerar o quanto deseja se aprofundar em cada parte do jogo e dos personagens, e principalmente quais etapas do método você considera que vão ser importantes para o seu jogo em específico.

Depois de considerar o escopo, é possível ter mais clareza sobre quais ideias selecionar para o seu jogo e definir a narrativa básica, um resumo da ideia principal. Pense em como os jogadores vão explicar o jogo quando alguém perguntar sobre o que ele se trata.

Compreensão do personagem

Essa etapa possui diversas sub-etapas, justamente por ser onde você poderá compreender melhor seu personagem e como ele se comporta no universo do jogo.

Vamos começar com uma espécie de brainstorming, onde o quadro a seguir é preenchido com diversas palavras que remetem ao personagem:

Quadro de sub-etapa da Compreensão do personagem. Nuvem de palavras: tudo que remeta ao personagem (visual, história, personalidade, gostos).
Quadro de sub-etapa da Compreensão do Personagem: nuvem de palavras

Essas palavras podem ser qualquer coisa que fazem parte da definição do personagem: visual, parte da história, personalidade, gostos, atmosferas, símbolos, etc. Logo mais teremos etapas onde essas palavras irão ficar mais organizadas.

Com essa ideia do seu personagem tomando forma, podemos passar para o próximo quadro, onde devem constar os objetivos do personagem no jogo. Esse quadro está dividido em duas partes:

  • Objetivos a longo prazo: aqui você poderá pensar melhor qual é o desejo duradouro do personagem, que vai persistir do início ao fim. Pode ser um objetivo bem simples e direto, como impedir que o vilão destrua o mundo ou proteger sua família, ou algo mais abstrato, como sobreviver ou encontrar um objetivo na vida. Lembre-se que também podem existir personagens aparentemente sem objetivos a longo prazo, mas eles serão construídos ou alterados durante o jogo, ou com objetivos pouco explícitos para o jogador, como pode acontecer em jogos de vida cotidiana ou que priorizam a jogabilidade e narrativa emergentes.
  • Objetivos a curto prazo: aqui é possível definir alguns objetivos que geralmente são os mesmos do jogador: ir até um local, pegar um item, encontrar uma pessoa. Pode ser interessante separar um objetivo para cada parte da estrutura da história. Ao definir os objetivos a curto prazo, pode ficar mais claro a sequência de eventos e o rumo da história, mesmo que os objetivos não sejam alcançados (o que também é uma possibilidade interessante).
Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem. Objetivo a longo prazo: persiste por toda a obra. Objetivos a curto prazo: persiste por partes da obra (estrutura da história).
Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem: objetivo a longo prazo e objetivos a curto prazo.

O próximo quadro tem quatro etapas: Motivação, Emoção, Defeito e Questão. Essas etapas são baseadas em uma ferramenta desenvolvida por Marika Nieminen, que consiste em 24 cartas com palavras separadas nessas 4 categorias:

  • Motivação: escapar, sacrificar, sobreviver, salvar, proteger ou adquirir;
  • Emoção: tristeza, alegria, aversão, medo, ira e surpresa;
  • Defeito: solidão, poder, desconfiança, ganância, ódio e ciúmes;
  • Questão: quando, quem, o quê, como, onde e por quê.

Seria interessante que pelo menos uma palavra por categoria fosse definida para o personagem, que respondesse as perguntas definidas no quadro a seguir:

Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem. Motivação: oque o faz buscar o(s) objetivo(s)? Emoção: que emoções são mais recorrentes? Defeito: o que causa problemas? Questão: que pergunta mais se busca responder?
Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem: motivação, emoção, defeito e questão

Essas palavras não precisam ser necessariamente as que Nieminen definiu para suas cartas, mas podem dar um norte para o que se deseja definir nesta etapa. No trabalho da autora, esses aspectos provaram servir de estímulo para artistas pensarem nas ações do personagem e se aprofundarem mais no seu psicológico. Se você deseja criar um personagem complexo, rico e realista, é interessante preencher essas etapas para melhor compreendê-lo.

Agora, podemos pensar um pouco sobre como o personagem chegou ao que ele é hoje. Para o próximo quadro, pense em detalhes da vida dele antes do momento “presente”, que será apresentado ao jogador. Imagine onde ele nasceu, quais aspectos culturais ele carrega, o que aconteceu no ambiente no qual ele cresceu, e outros detalhes contextuais que estão fora do controle do personagem.

Pense também em quais escolhas foram essenciais para o que ele é hoje, hobbies, gostos, e outras informações que refletem as escolhas do personagem (e/ou do jogador). Aqui também é possível imaginar qual tipo de conteúdo do personagem poderá ser personalizado, ou se existirão ramificações da história. Resumindo, tudo que é relacionado a alguma escolha relacionada ao personagem no jogo.

Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem. Contexto: detalhes fora do seu controle, cultura, acontecimentos externos, aspectos do ambiente. Escolhas: detalhes dentro do seu controle, hobbies, gostos, ramificação de história, personalização.
Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem: contexto e escolhas

Entrando mais a fundo no psicológico do personagem, podemos começar a pensar em coisas contraditórias sobre ele. Por exemplo, digamos que o personagem é tímido mas gostaria de ser um ator de teatro, ou que é um assassino que acredita na moral e bons costumes. Podemos imaginar também conflitos internos do personagem, como o desejo de ser bom mas se ver como uma má pessoa sem chances de salvação.

O quadro a seguir também apresenta a etapa de visão social, onde você pode imaginar aspectos relacionados à sociabilidade do personagem. Que tipo de pessoa ele prefere ter por perto, se é um personagem que se importa com as injustiças, quais as preferências românticas, entre outros.

Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem. Contradições: inconsistências, aspectos hipócritas, “pecados”, conflitos internos. Visão social: preferências em relações interpessoais, empatia, fatores que afetam a sociabilidade.
Quadro de sub-etapas da Compreensão do Personagem: contradições e visão social

Em um nível ainda mais detalhado sobre o personagem, você pode imaginar alguns detalhes específicos que o fazem único. Algumas sugestões são padrões de fala, gestos recorrentes, uma marca de nascença, se transpira muito quando está nervoso, alguma alergia, mas dê preferência aos detalhes que vão ser mostrados no jogo até certo nível.

Quadro de sub-etapa da Compreensão do Personagem. Detalhes: padrões de fala, manias, gestos recorrentes, trejeitos.
Quadro de sub-etapa da Compreensão do Personagem: detalhes

Lembre-se de que todas essas etapas devem ser um guia de considerações para que você consiga compreender melhor seu personagem e deixar que ele “tome ações por conta própria”. Ou seja, devem servir para que você tenha uma melhor compreensão de como o personagem pensa, e o que ele gostaria de fazer.

Uma sugestão à parte é utilizar a classificação tipológica de Myers-Briggs (MBTI) como forma de garantir a consistência do personagem e previsibilidade nas suas ações e reações. De forma muito simplificada, pode-se dizer que essas classificações indicam preferências na utilização de julgamento e percepção do mundo, e em cada “categoria” você deve escolher qual é a preferência do personagem, de duas disponíveis. Note que essas preferências indicam qual linha de pensamento o personagem segue de forma praticamente automática, mas não significa que ele não possa pensar de outra forma.

Essas preferências individuais são divididas da seguinte forma:

  • Mundo favorito: o personagem prefere dar atenção e é “energizado” pelo mundo externo e outras pessoas (extroversão), ou pelo mundo interno e seus próprios pensamentos e ideias (introversão)?
  • Informação: o personagem prefere perceber o mundo segundo seus sentidos e coisas comprovadas, fatos (sensação), ou analisar a informação a partir de padrões, metáforas e ideias próprias (intuição)?
  • Decisões: ao tomar decisões, é mais natural para o personagem considerar a lógica e ser impessoal (pensamento) ou considerar pontos de vista de outras pessoas e valores (sentimento)?
  • Estrutura: ao lidar com o mundo externo, o personagem prefere ser organizado, metódico e completar tarefas (julgamento) ou ser flexível, espontâneo e estar aberto a novas informações (percepção)?
Tabela de dicotomias do MBTI. Disponível neste link

Definição da jogabilidade

Como esse método foca no desenvolvimento de personagens, vamos considerar que seu jogo já possui uma ideia sólida e já está com certo desenvolvimento. O objetivo aqui é pegar as informações que você já possui sobre o seu jogo e tentar identificar pontos de melhoria nos aspectos de jogabilidade, fazendo com que o personagem pareça mais integrado ao jogo de forma homogênea.

Pense no estado atual do seu jogo. O que o personagem (ou o jogador) pode fazer, ou o que você tem certeza que será implementado? Quais são as relações entre inputs e suas combinações?

Com essas informações em mente, coloque-se no lugar do personagem. Considerando a forma que ele pensa, personalidade, experiências passadas e outros detalhes definidos na etapa de Compreensão, quais são as ações que o personagem gostaria de fazer? Essas ações já estão implementadas no jogo? Seria interessante (e dentro do escopo) colocá-las? E as ações que já existem, será que fazem sentido mantê-las considerando a visão do personagem?

Agora, imagine a visão do jogador, tendo em mente o que ele absorveu de informações sobre o personagem. O que o jogador gostaria de fazer no papel do personagem? Quais ações agradariam o jogador e ao mesmo tempo fariam sentido para o personagem?

Quadro de sub-etapas da Definição da Jogabilidade. Estado atual: o que o personagem pode fazer? Visão do personagem: o que o personagem gostaria de fazer? Visão do jogador: o que o jogador gostaria de fazer no papel do personagem?
Quadro de sub-etapas da Definição da Jogabilidade: estado atual, visão do personagem e visão do jogador

Lembre-se que a experiência narrativa para o jogador é formada por o que ele interpreta das reações do jogo ao que ele faz. Assim, considere ter elementos no jogo que criem narrativas emergentes. Algumas dicas são adicionar mais ações ou mecânicas, atribuir uma mesma ação para diferentes objetos de jogo (podendo até ter resultados diferentes, por exemplo: uma corda que pode laçar pessoas, animais e objetos), e oferecer mais de uma solução para um mesmo problema ou objetivo (exemplo: empurrar uma caixa com o próprio personagem ou puxar com a corda).

Exploração do visual

Com esses aspectos “internos” definidos, podemos começar a pensar nos aspectos “externos” do personagem. Aqui o objetivo é explorar as diversas formas gráficas que esse personagem pode ter e encontrar a que faça mais sentido e encaixe no jogo. Vale ressaltar que é importante que a etapa de Compreensão já tenha sido utilizada em pelo menos algum nível. Também é encorajada a liberdade artística e a alteração de aspectos já definidos sobre o personagem: lembre-se que um dos princípios do método é revisitar e complementar as informações existentes, em um ciclo de desenvolvimento contínuo, então sinta-se livre para alterar o que já foi definido para o personagem se você julgar necessário.

No quadro a seguir, o objetivo é reunir referências visuais para o personagem: temática, ambientação, texturas, cores, estilo, anatomia e outros elementos que contribuam para uma visualização gráfica do personagem.

Quadro de sub-etapa da Exploração do Visual. Painel semântico: referências visuais para o personagem.
Quadro de sub-etapa da Exploração do Visual: painel semântico

Geralmente, é importante se basear em materiais teóricos para selecionar e relacionar elementos visuais com a psicologia do personagem. O ser humano costuma deduzir aspectos como comportamento e personalidade de 7 a 12 segundos após o primeiro contato visual com outras pessoas (ou, no nosso caso, personagens), portanto é recomendado que o visual do personagem seja elaborado considerando qual o impacto que se deseja criar à primeira vista. Essas deduções acontecem subconscientemente e possuem certa explicação na área de psicologia, mas vamos simplificar para alguns dos principais aspectos que podem ser pensados e atribuídos intencionalmente para os personagens.

Linguagem corporal

Para definir aspectos da linguagem corporal, identifique elementos que podem influenciá-la, como cultura, humor e relações entre personagens. As expressões faciais podem ser consideradas no sentido de revelarem o estado psicológico do personagem, mas também podem ser usadas para indicar alguns aspectos como objetivos de jogo e a posição social do personagem em certas situações.

Formas geométricas

A utilização intencional das três formas geométricas básicas costumam ajudar o jogador a perceber alguns detalhes sobre o personagem instintivamente (e até causar surpresa se o significado for subvertido). Geralmente, essas formas geométricas costumam ser relacionadas a estes significados:

  • Círculo ou linhas curvas: juventude, natureza, inocência, conforto.
  • Quadrado ou linhas retas: estabilidade, força, lógica, confiança.
  • Triângulo ou linhas diagonais: perigo, conflito, energia, velocidade, intensidade.

Cores

As cores também podem representar uma gama de significados, que podem ser diferentes em cada cultura e devem ser interpretados de acordo com o contexto do personagem. A tabela a seguir reúne algumas relações comuns entre cores e conceitos:

Tabela de relação entre cores e seus possíveis significados. Disponível neste link

Considerando esses e outros aspectos teóricos que podem ser estudados mais a fundo, é possível começar a desenhar esboços de alternativas para o visual do personagem, para o quadro a seguir:

Quadro de sub-etapa da Exploração do Visual. Alternativas: esboços de possíveis visuais para o personagem. Nota de rodapé: visuais clichês/estereotipados? Muitos detalhes, poluído? Não passa as sensações de primeiras impressões? Cores sem significado, sem harmonia?
Quadro de sub-etapa da Exploração do Visual: alternativas

Algumas definições sobre um bom design de personagem incluem o quanto ele é consistente e coerente com o que se deseja transmitir da personalidade, ou como as palavras escolhidas na Nuvem de Palavras estão sendo representadas de forma abstrata.

Para a elaboração dos esboços ou rascunhos do visual do personagem, não existem regras sobre a quantidade de rascunhos ou se deve ser feito um esboço completo ou por partes (como forma corporal primeiro, e depois roupas, expressões faciais e penteado, se deve-se aplicar cores nos esboços ou depois de selecionar um esboço), ficando livre ao utilizador do método experimentar qual processo é mais interessante para ele, ou utilizar seus processos próprios.

O que se pode entender é que quanto mais variações e esboços, mais longe do óbvio o design final ficará, o que significa encontrar diferentes soluções para o mesmo problema e evitar um personagem “genérico”.

Para o ciclo de elaboração de esboços, podemos seguir um passo-a-passo:

  1. Desenhar uma alternativa considerando os detalhes já estabelecidos sobre o personagem;
  2. Identificar problemas na alternativa (visuais clichês ou estereotipados demais, muitos detalhes tornando o visual poluído, ou a falta de detalhes importantes para as sensações de primeiras impressões que se deseja passar );
  3. Repetir as etapas 1 e 2, buscando solucionar os problemas.

Antes de selecionar uma alternativa visual final para o personagem, é interessante considerar suas animações no jogo e como elas podem afetar o design.

Planejamento de animações

Nessa etapa vamos planejar quais animações do personagem estarão presentes no jogo, pensando em como elas se relacionam com o que foi definido sobre o personagem até agora. Podemos começar definindo uma lista de todas as animações que o personagem terá no jogo (por exemplo: caminhar, pular, agachar e atirar), e então elaborar pequenos rascunhos (ou storyboards) que representem movimentos chave que serão animados futuramente. Assim, podemos preencher o próximo quadro:

Quadro de sub-etapas de Planejamento de Animações. Lista de ações: tudo que precisará de animação no personagem. Lista de storyboards realizados: rascunhos de poses principais de cada animação.
Quadro de sub-etapas de Planejamento de Animações: lista de ações e lista de storyboards realizados

Podemos comparar esses rascunhos a histórias em quadrinhos: devem ser claros ao comunicar o foco da ação (ou momento) e representar individualidades do personagem como gestos e expressões.

Existem diversos elementos que são importantes na animação de personagens, os mais famosos sendo os 12 princípios básicos da animação, desenvolvidos pela Disney. Mas podemos considerar que para a elaboração dos storyboards, por não serem animações em si, esses princípios não são extremamente essenciais, apesar de terem certa relevância.

Ainda assim, como um guia básico para aspectos que você pode desejar representar na animação, podemos considerar um dos princípios da LMA (Laban movement analysis): o esforço, que pode ser separado nas seguintes categorias:

  • Espaço: relacionado à atenção e processo de pensamento que culminou no movimento, pode ser direto (específico, focado) ou indireto (focos múltiplos ou em conjunto, recebendo influência de todo o ambiente);
  • Peso: pode ser leve e delicado, vacilante e fraco, forte e poderoso, ou pesado, passivamente denso;
  • Tempo: o movimento pode ser súbito (rápido, imediato) ou sustentado (demorado, prolongado);
  • Fluxo: esse aspecto do movimento pode ser livremente fluido (aberto, incontrolado) ou limitado (rígido, contido ou repetitivo).

Essas considerações sobre o movimento podem ser importantes para relacionar a natureza e objetivo do movimento com a personalidade do personagem ou seu estado emocional.

Finalização do design

Depois de selecionar uma (ou mais) alternativa/esboço que você julgue adequada para o seu jogo, podemos seguir para a próxima etapa, que é o refinamento e finalização.

Pode ser interessante que outros personagens importantes para o seu jogo já tenham passado pelas outras etapas até aqui antes de definir o design final, para manter a consistência e comparar os visuais e silhuetas.

Também é importante que esse design final sirva como guia para a elaboração dos recursos de jogo futuramente (como sprites ou modelos 3D), então considere evidenciar acessórios importantes como armas, equipamentos e roupas.

Assim, com o visual final do seu personagem em mãos, o próximo quadro pode ser preenchido:

Quadro de etapa de Finalização do Design. Design finalizado: servirá de guia para recursos do jogo.
Quadro de etapa de Finalização do Design: design finalizado

Complementação das etapas

Por fim, a última etapa serve para reforçar os princípios do método C3R: cíclico e complementar de compreensão revisitável. Essa etapa tem o objetivo de revisitar os quadros anteriores e complementar as informações a partir do que foi produzido até agora. É importante lembrar que você é livre (e encorajado) para omitir etapas, voltar em uma etapa anterior e modificar alguma informação, remover ou adicionar novas informações e trabalhar o seu personagem da forma mais dinâmica possível.

Elaborei um último recurso que serve como resumo do método, para acompanhar os quadros como forma de relembrar essas características e alguns conceitos teóricos:

Resumo do método. Disponível neste link

Gostaria de reforçar que você é a única pessoa que pode julgar o quanto esse método foi relevante para a criação e desenvolvimento do seu personagem, e verificar se o personagem criado está compatível com o seu projeto de jogo, pois cada jogo é único e cada personagem é diferente.

Dessa forma, espero que o método C3R tenha atingido o objetivo de trazer à tona esses diversos aspectos que constituem um personagem de jogos digitais, e que possa servir como guia de considerações para um personagem interessante e atrativo.

Sinta-se livre, também, para comentar as suas opiniões sobre o método, e deixe-me saber se essas considerações realmente fazem a diferença! Estou ansiosa para saber sua opinião e conhecer os personagens desenvolvidos através desse método.

O arquivo PDF com os quadros e o resumo está disponível neste link.

Clique aqui para ler as referências do artigo.

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Julia Stefanello
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Desenvolvedora front-end, estudante de Jogos Digitais e artista 2D sob o nome artístico Mephistia. Apreciadora de metal extremo e trocadilhos ruins.

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